Everton Luiz Martins Rodrigues.
25/11/2025
Dos testamentos mais emblemáticos às câmeras da Rede Globo: a trajetória de Everton Luiz Martins Rodrigues.
O registrador de Piracicaba revela uma trajetória guiada pela ética e pela vocação, e relembra sua participação no SPTV, a lavratura de testamentos de personalidades e o episódio envolvendo o assassinato de um político presidenciável de um país vizinho.
Por Samila Machado
Colaboração: Naiara Ribeiro
Como um reconhecimento de firma revelou uma vocação profissional?
Everton nasceu em Jundiaí, em 1965. Aos sete anos, mudou-se com a família para Batatais, no interior de São Paulo. Sonhava ser cientista, mas, aos 14 anos, viveu uma experiência que mudaria sua vida. O pai, representante comercial, pediu que ele fosse ao cartório reconhecer firma de um documento. O papel estava em branco, apenas com a assinatura. O atendente recusou. No rodapé do formulário, lia-se: “preencher somente à máquina”. Everton pediu para usar a máquina de datilografia do balcão interno do cartório e o telefone para ligar em casa e perguntar os dados cujo formulário exigia. O chefe se impressionou com a iniciativa tomada, chamou-o para conversar e perguntou se o pai tinha firma (assinatura arquivada no cartório). Sem entender a pergunta, ele respondeu que o pai era apenas um representante comercial na região. No fim, recebeu uma proposta de trabalho. O pai, que inicialmente resistiu, ligou para o chefe para agradecer e recusar a oferta feita ao filho, alegando que, no período noturno, o ensino era mais fraco e poderia comprometer o desenvolvimento escolar. O chefe respondeu que o menino tinha iniciativa, algo raro e exatamente o que o cartório precisava, e que se comprometia inclusive a lhe conseguir uma vaga naquela escola. Orgulhosos e sem jeito para continuar rejeitando, os pais aceitaram que Everton trabalhasse, desde que também se dedicasse aos estudos. Foi assim que Everton começou a carreira ainda menino, acumulando uma experiência que, como ele diz, “não tem preço”.
Everton durante entrevista à jornalista Samila Machado, no 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de Piracicaba (SP).
Do balcão à titularidade
Com 17 anos, Everton concluiu o ensino médio e entrou na faculdade de Direito em Ribeirão Preto. Continuou trabalhando no cartório durante o dia e estudando à noite. Formou-se aos 21 anos, em 1986.
Aos 23 anos, se casou. O tabelião, aquele que o acolheu ainda menino, foi padrinho e testemunha da cerimônia, mas faleceu poucos dias depois, vítima de infarto fulminante, aos 40 anos. Everton foi então nomeado interino. No mesmo ano, 1988, a nova Constituição passou a exigir concurso público para o acesso à titularidade.
Ao centro, de terno e camiseta listrada na horizontal, Dr. Alceu Alves Ferreira Filho, titular do 2º Ofício de Batatais e mentor de Everton, que está ao seu lado à direita. Registro de 1986.
Jardinópolis
"No primeiro concurso que prestei, passei. Fiquei em quarto lugar na prova escrita, mas como o que mais contava naquele certame eram os títulos, acabei indo para uma comarca com cerca de 15 mil habitantes. Também não tinha os 10 anos de escrevente para uma entrância mais elevada, era a regra do jogo."
"Depois da recontagem com os títulos, fui para o 58º lugar na classificação geral daquela categoria e escolhi Jardinópolis."
"Informatizei o cartório. Comprei um computador da IBM e financiei em 48 meses. As placas dos PCs eu tirava com as duas mãos, eram tão grandes que pareciam tábuas de bater bife! E a impressora de formulário contínuo de 132 colunas ... era monstruosa. Fazia tanto barulho que parecia que o mundo ia acabar. Vibrava tanto que eu tinha que segurar o cabo e trazê-la de volta para perto do computador toda hora."
As imagens a seguir guardam registros de 1991.
Interino na capital
“Acredito que devido à minha organização, conquistei respeito e fiquei conhecido pela dedicação e firmeza na condução da atividade notarial. Fui convidado para assumir a intervenção e interinidade de um cartório na capital paulista, que passava por situações complicadas no tempo da implantação da gratuidade no registro civil. O Jornal SPTV chegou a ir até o local, e eu fui entrevistado ao vivo. Demonstrei interesse em solucionar a questão." Assista à entrevista aqui.
"A princípio, ideia era de ficar por apenas 90 dias... nomeado interino, acabei ficando por quase 3 anos. Em Jardinópolis, eu tinha três funcionários. Em São Paulo, quase uma centena."
Revezava entre São Paulo e meu cartório no interior. Naquela época, o tabelião precisava ir pessoalmente para fazer testamentos. Eu ia para lá a cada 15 dias. A comunicação era ruim, internet discada, telefone precário, mas com fax, mas tinha uma equipe treinada e rotina rígida.
“Nessa época, trabalhando em São Paulo e longe da família que estava em Batatais, a mais de trezentos quilômetros de distância, com um filho pequeno e a mãe enferma, aproveitei para estudar, visando o concurso que havia sido aberto para as serventias notariais e registrais da capital do Estado. Foi um período muito intenso, mas aprendi demais.”
Veículo da Rede Globo estacionado em frente à serventia, no ano de 1997, conforme mencionado na entrevista acima.
17º Cartório de Notas de São Paulo
“Passei no concurso e assumi o 17º Cartório de Notas de São Paulo, e em seguida mudei sua sede da Praça da Sé para a da Liberdade.
Logo que cheguei, fechei as portas para um punhado de coisas que eu estava convicto de que não podia permitir. Um exemplo foi a redução da rentabilidade do cartório. Alguns bancos eram correntistas do cartório e mandavam volumes imensos de documentos para autenticar, mas com as novas regras mais exigentes, foram se afastando de nós. E olha que isso tudo ainda era feito na base do carimbo.
"Com relação às escrituras, começamos a uma análise de viabilidade registral e se havia atos pendentes a serem praticados e que poderiam ser motivo de recusa ou exigência na fase do registro, procurando observar todos os princípios e especialmente o da continuidade. "O regime de bens naquela época era confirmado pelas partes com uma olhada na gravação da aliança: se a data gravada no anel fosse de até 1977, então se assumia que era comunhão universal. Havia inúmeras escrituras pendentes de registro por esse motivo porque o estado civil era tratado como simples objeto de declaração.
Passamos a exigir, previamente a lavratura das escrituras, que todos os documentos fossem apresentados corretamente e de forma atualizada. Com essas exigências, passamos a perder muitos serviços, e a receita financeira do cartório caiu significativamente.
"Foi então que decidi prestar um novo concurso. Entendi que não era justo ser remunerado pelo que permitia fazer, mas sim pela qualidade do serviço que prestava e isso acabava não acontecendo."
Registro de 2000, com o cartório ainda localizado na Praça da Sé.
Registro de 2001, com o cartório agora localizado no bairro da Liberdade.
1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de Piracicaba (SP).
Alguns anos depois, no concurso seguinte para o interior, obtive êxito em ser aprovado para a especialidade de registro de imóveis, e dentre as opções que tive, escolhi vir para Piracicaba. Estou aqui desde 2003. Vim com o propósito de juntar a família e ficar e assim tenho feito.
“No início, junto com o então colega do 2º Registro de Imóveis, que como eu também era tabelião em São Paulo, mudamos paradigmas e por conta disso enfrentamos bastante pressão — chegou a ocorrer até audiência pública no legislativo municipal visando discutir critérios dos processos registrais imobiliários. Mais de vinte anos depois, embora os problemas rotineiros ainda persistam, conseguimos ver com bastante clareza o saneamento da segurança jurídica no sistema registral imobiliário da comarca. Hoje, embora ainda sejamos conhecidos como bastante exigentes, a comarca oferece muita segurança especialmente nos empreendimentos que registra”.
Lembrou que em todos os concursos feitos a partir da Lei 8.935/94, já se submeteu a 6 exames orais que o fazia sentir como se o coração saísse pela boca. “Só eu sei a sensação: a dor de barriga, o som do próprio coração ecoando nos alto-falantes da sala, como se fosse explodir.” E saber que tanta gente inteligente, bem-preparada, trava sob pressão, dá um branco e não consegue avançar.”
“Me considero abençoado por Deus e um verdadeiro privilegiado. Consegui me sair bem na hora certa e ao menos demonstrar o conhecimento que tinha”.
Poderia em muitas ocasiões, ter escolhido cartórios economicamente até mais viáveis, mas nunca olhou para trás. Crê que com a ajuda de Deus, sempre fez as escolhas acertadas. “Estou nessa atividade não pelo resultado financeiro, até porque jamais pretendia ingressar nessa carreira, mas pela paixão que tenho pelo que eu faço.”
Apenas observando, acredita que não deveria haver tamanha discrepância nas remunerações dos titulares das diversas especialidades — notas, registro civil, títulos e documentos, protestos e registro de imóveis, e respectivas cidades por seu porte. Todavia, é realmente uma conta difícil de fechar, até porque algumas delas são atividades concorrenciais entre os titulares que uma vez aprovados nos concursos, são igualmente capazes.
Quanto a forma de vacância e de escolha das serventias, lembrou que se pudesse sugerir mudanças, eliminaria o critério de definir a serventia como vaga para ingresso, remoção ou para os portadores de necessidades especiais etc., apenas na hora da escolha, seriam chamados os classificados de cada uma dessas categorias, nas respectivas proporções e ordem de classificação.
foto de 2003
foto de 2004
foto de 2006
Teve alguma situação que te trouxe um aprendizado inesquecível?
Muitas, sem dúvida. Porém, uma das que agora me recordo, foi quando ainda residindo em Batatais, fui prestar um concurso em São Paulo e nesse trajeto um episódio me marcou profundamente com um ensinamento sobre a honestidade. “Não basta ser honesto, também é preciso parecer.”
Esse episódio acabou inspirando um conto escrito pelo irmão de sua esposa, que, com as devidas adaptações, segue transcrito ao final.
Um outro caso pitoresco aconteceu no concurso no início dos anos 90 quando ainda muito jovem, durante uma sessão de escolhas no Tribunal de Justiça, em São Paulo. As especialidades e entrâncias estavam divididas em grupos — Registro de Imóveis, Notas, Registro Civil, 1ª., 2ª., 3ª. Entrância Especial, etc. Por ter uma aparência ainda muito jovem, uma senhora me abordou indagando para qual concursado eu estava trabalhando ou ajudando. Respondi que eu mesmo era concursado. Ela, surpresa, perguntou se eu era da turma de Registro de Imóveis. Quando disse que não, pediu que então que aguardasse fora da sala porque naquele momento seriam escolhidas as entrâncias mais elevadas.
Enquanto esperava, aconteceu aquele problema que sempre me perseguiu em momentos de tensão: o famigerado intestino, que parecendo ser um segundo cérebro, resolveu se manifestar. Comecei a sentir cólicas horrendas e, preocupado porque a hora da escolha estava se aproximando, corri para um banheiro próximo. Entrei suando a bicas, pendurei o paletó na porta e, ao terminar, percebi que não tinha papel higiênico— nem ducha. O desespero bateu.
Lembrei, então, que no bolso do paletó havia um lenço de linho bordado com meu nome, “Everton Luíz”, presente de antes mesmo do casamento. Sem outra alternativa, peguei-o com tristeza e depois descartei no cesto. O problema foi que ele caiu de forma que o bordado com meu nome ficou virado para cima, brilhando como um letreiro de neon. Tentei sacudir o cesto para virá-lo, mas ele não se moveu.
De repente, ouvi um barulho na porta de entrada dos sanitários. Saí, lavei rapidamente as mãos e cruzei com uma senhora que empurrava um carrinho cheio de fardos de papel higiênico. Ela disse: “Perdão, pensei que estava vazio. Vim reabastecer”. Ela entrou para fazer o serviço, e eu saí de fininho, pedindo a Deus que ela não olhasse muito para o fundo daquele maldito cesto.
Cheguei à sessão de escolha ainda pensando no lenço e imaginando que a mulher poderia encontrá-lo. Pouco depois, alguém avisou: “Já está chegando a sua vez”. Meu coração disparou quando ouvi meu nome ser chamado por uma voz no fundo da sala. Na hora, pensei que fosse a funcionária do banheiro vindo me devolver o lenço, mas, para meu alívio, era apenas a chamada final para eu assinar a lista de presença e não perder o momento da escolha. Que alívio.
Testamentos marcantes
No concurso para as serventias de São Paulo, por exemplo, vi na lista de candidatos nomes de renomados profissionais, inclusive de autores de obras nas quais estudava e pensei: “Como vou concorrer com alguém assim?”? Mais tarde, chamado por um daqueles de “colega”, fui convidado a lavrar o testamento do renomado Professor Theotonio Negrão. Fui visitá-lo para a entrevista e confesso que aprendi muito.
Fiz outros testamentos que também me marcaram. Além de diversos desembargadores e até presidentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, lavrei o de Olacyr de Moraes, então conhecido como o “rei da soja” e muito divertido. Até de um membro militar integrante do governo de um outro país, que optou por um testamento cerrado que declarou querer deixar registrado o testemunho pessoal acerca de um assassinato de um candidato político daquele país.
Também teve o de Paulo Planet Buarque e sua esposa, ele um reconhecido político e apresentador no início da televisão no Brasil. Sua simpatia, educação e elegância simplesmente me impressionaram. Era uma pessoa com dignidade humana no relacionamento com os outros, valorizava as pessoas. Isso me marcou profundamente. Eu vim de uma classe social muito baixa e encontrei pessoas que me fizeram sentir muito maior do que eu era, de fato, apenas pelo respeito e consideração que demonstraram.
Fazer entrevistas para os testamentos enquanto tabelião, realmente me encantava. Muitas vezes, a sessão se transforma em um verdadeiro confessionário: a pessoa revela mágoas, histórias, interesses e suas justificativas. Compartilha as agruras de sua vida para explicar as razões por trás da forma como decidiu dispor de seus bens.
Como você enxerga o avanço da inteligência artificial nos cartórios?
Eu costumo dizer a minha equipe que a tendência é incorporarmos a inteligência artificial cada vez mais. Pode até diminuir a operação humana mecanizada. Mas diminuir o emprego? Creio que ainda não. Vai desaparecer aos poucos o trabalhador de serviços mecânicos, mas o analista intelectual e o solucionador de problemas sempre serão indispensáveis.
Tem gente que ainda recebe um volume enorme de serviços para digitar, alimentar índices, e faz isso muito bem. Mas essa atividade está fadada ao desaparecimento. Ler papel e colocar dados em uma planilha, a inteligência artificial já esta fazendo isso e bem melhor. Agora, raciocinar juridicamente, pensar na coerência e na lógica do sistema, um treinador da máquina, isso ainda depende de nós. Por quanto tempo, não sei.
Algumas checagens até podem ser programadas em algoritmos, mas é preciso saber alimentá-los. E quem vai fazer isso? Pessoas. Mas não qualquer pessoa: gente que use mais o intelecto e não apenas a força de trabalho. Não adianta ter alguém apenas digitalizando imagens. Em pouco tempo, não haverá mais documento físico. O que vai fazer diferença é o feeling, a sensibilidade e a atenção aos detalhes. Esses profissionais vão sobreviver na atividade, porque conseguem compreender a complexidade jurídica aliada à inteligência artificial.
A inteligência artificial tem, sim, uma velocidade avassaladora. Mas acredito que a transformação total do sistema registral ainda leva tempo porque, para funcionar plenamente, precisa ser institucionalizada, ter um padrão único. Não dá para ter inúmeros padrões diferentes em um país do tamanho do Brasil. A ONR está incessantemente trabalhando nesse sentido.
Que conselho daria para quem está começando agora?
Duas coisas nas quais as pessoas deveriam investir são a disseminação do conhecimento e a prática da gentileza. É o melhor investimento que existe. Muitos jovens almejam bens materiais e de forma imediatista, mas hesitam quando se trata de buscar e investir em conhecimento. Vivemos em um mundo repleto de informações, porém carente de profundidade e consistência. Se não houver nada para fazer, leia. Enriqueça seu vocabulário, amplie sua visão de mundo. Saber escrever de verdade já é o que separa os meninos dos homens.
Faça o melhor onde estiver. Estude sempre. Conhecimento é dinâmico: quem para, fica para trás e não alcança mais. O mais atualizado sempre passa à frente.
Formou-se em Direito, entrou num cartório e parou de estudar? Está a um passo de ser dispensado. O que ele sabia já foi rapidamente superado, e ele não acompanha mais.
É como um médico que não se atualiza. Pode ter o título, mas na prática perde a especialidade. Com o preposto ou o registrador, não é diferente. Sem atualização, o conhecimento envelhece.
Memórias de 2002
O Notariado vem historicamente enfrentando perdas e o avanço da tecnologia contribui.
Embora esteja há 22 anos na atividade registral, sou um notário de nascença e há anos vejo e ouço reclamações sobre a perda de seu espaço. A atividade notarial vem lutando muito, especialmente contra a pressão do lobby das instituições financeiras e outros seguimentos do setor imobiliário, para que os negócios jurídicos sejam formalizados apenas por instrumentos particulares e não por escrituras públicas, sem observar a significativa perda de segurança jurídica no tocante a identificação das partes e manifestação de suas vontades. Isso realmente acabou minguando bastante o volume da atividade notarial. O registro de imóveis é testemunha disso. A crescente extrajudicialização de alguns procedimentos é que vem aos poucos fazendo um contrapeso.
Hoje, com as assinaturas digitais, especialmente aquelas no padrão ICP-Brasil que dispensam o reconhecimento de firma, aos poucos vão reduzindo a atividade do reconhecimento de firmas. Sem contar que a possível multiplicidade dos documentos digitais assim formalizados, acaba afastando também a necessidade de autenticação de cópias.
É, de fato, uma vocação?
Essa atividade conversa com quem você é? Você sente que nasceu para isso? Porque, no fundo, é uma escolha de vocação.
Para quem deseja ingressar nesta área, digo sempre: não venha apenas pelas condições financeiras. Primeiro, conheça a profissão. Hoje, há na internet inúmeras histórias de titulares de cartórios, especialmente do Estado de São Paulo que conheço, onde há profissionais historicamente muito competentes, que compartilham suas trajetórias. É importante entender que muitos chegaram lá com muito esforço e trabalho, enquanto outros tiveram oportunidades diferentes e entraram direto por concurso sem uma carreira prática na área. O sistema permitiu que fosse assim, mas essa não é — e não será — a regra, creio. A tendência é que, com o tempo, tudo se alinhe de forma mais justa, até porque a sociedade não aceita disparidades tão grandes. É necessário que a carreira na atividade notarial e registral tenha ingresso nas serventias menores, a exemplo do que ocorre nas demais carreiras jurídicas em geral. A remoção ou promoção devem ser regradas de maneira a criar um crescimento natural da carreira.
Posso ser crucificado por isso, mas como explicar que um cartório pode render importâncias tão astronômicas como as que se noticiam por aí? É justo isso num país tão pobre? A sociedade não aceita e temos que compreender isso.
Em países onde a distribuição de renda é mais equilibrada, a distância entre o profissional mais gabaritado e o trabalhador braçal por exemplo é bem menor — ambos podem frequentar um restaurante bom. É claro que existem diferentes níveis de remuneração, mas a oportunidade deve ser dada a todos e a renda deve ser melhor distribuída.
O ambiente em que convivemos influencia muito. Quando estamos cercados de pessoas éticas e comprometidas, isso nos estimula a melhorar. O contrário também é verdadeiro.
Sempre digo aos novos colaboradores para que eleja “tutor” na área do cartório em que vai atuar, e siga o exemplo e os passos daquele que na sua observação você o contrataria se fosse dono do negócio.
Everton ao lado do 1º Tabelião de Protesto de São Paulo, Dr. José Carlos Alves, em meados de 2002.
Concurseiros
Há muitos que mudam de serventias, especialidades e até de estados constantemente: hoje neste, amanhã naquele, sempre atrás de uma nova serventia. Pessoas inteligentes, preparadas e qualificadas, mas que não se fixam. E como investir e se preocupar com o futuro de um lugar, se já estão pensando no próximo destino? Posso estar enganado, mas no fundo me parece que a visão acaba sendo mais econômica do que qualquer outra coisa. Infelizmente o sistema permite isso tudo.
Antigamente, em diversos estados, os critérios de designação após a vacância permitiam práticas que hoje são proibidas, como o nepotismo — manter substitutos que eram familiares dos ex-titulares. Houve até ações propostas por entidade de classe cujos integrantes mais atuantes eram interinos, visando a suspensão e até anulação de concursos em andamento. Eu próprio, juntamente com alguns colegas, fomos vítimas de uma exclusão do quadro de associados de uma determinada entidade, por defender a continuidade de um concurso público em andamento. Pode parecer um absurdo, mas infelizmente ocorreu.
Como já disse anteriormente, os concursos deveriam ser sempre pensados e organizados para uma carreira, ou seja, com a classificação das comarcas e o ingresso ocorrendo na base. A partir daí, o profissional iria progredindo por promoção. Todos os concursos de ingresso deveriam ser apenas para essa base da pirâmide, como acontece na magistratura ou no Ministério Público. Talvez a carreira de concurseiros tomasse outro rumo.
Nos concursos públicos, em geral, funciona assim: ninguém faz concurso direto para ser desembargador de tribunal de justiça ou procurador geral, por exemplo. A carreira é estruturada para que a pessoa chegue lá gradualmente e, depois, possa se candidatar entre seus pares, conquistando legitimidade e a aceitação daquela e de toda a sociedade.
O problema é que, embora minoria, infelizmente há ainda quem preste concurso, assuma um cartório em determinada comarca e, pouco tempo depois, desaparece de lá — vão ver, está na Suíça, nos Alpes, na Grécia, em NY etc., ostentando abertamente enquanto o cartório fica sem a presença do titular e muitas vezes até com problemas. Isso tem sido motivo de muitas notícias e prejudica significativamente a imagem da classe.
Enquanto isso, a grande maioria dos titulares especialmente das pequenas cidades, estão lá lutando arduamente para manter sua serventia a duras penas e até precisando de subsídio da própria classe através do Fundo Especial.
Isso leva a sociedade a entender necessária a revisão da tabela de emolumentos, de maneira a reduzir esses elevados ganhos, mas se esquece que ela refletirá muito mais na base da pirâmide, onde a grande maioria vive com bastante dificuldade. Somente a criação de mais cartórios para os novos concursos, respeitando é claro o direito adquirido, é que poderá solucionar essa questão. Minha tese é de que o cartório deve ter o tamanho em que o titular tenha capacidade pessoal de fiscalizar efetivamente todos os atos do seu ofício.
Nem sequer a criação de um teto, como alguns pretendem, poderá solucionar a questão. É evidente que havendo um teto, não seria justo que um titular trabalhe muito mais que outro e com semelhante remuneração, e com muito mais responsabilidade e investimentos, dentre outras, especialmente a trabalhista que atualmente é a que mais preocupa. Veja a situação dos grandes cartórios vagos no Estado de São Paulo, cuja interinidade nenhum titular se encoraja a assumir.
Essa é a uma ideia que deixo para reflexão.
Memórias de 2006
Critérios
No geral, considero a atividade notarial e registral bela e de grande importância. Ela garante segurança jurídica e patrimonial às pessoas, ao mercado e ao sistema financeiro, possibilitando a circulação segura da riqueza. Mas precisa ser exercida com extremo cuidado, observância da legalidade e certeza de que todos os atos adotam o máximo de segurança possível.
No registro, trata-se de assegurar direitos; no notariado, de transformar em
ato a vontade das partes — desde que essa vontade seja juridicamente
possível. Nem tudo que é desejado pode ser formalizado; é
preciso conhecimento técnico para identificar quando os requisitos
não estão presentes, mesmo que de forma implícita.
Everton atualmente.
Você ainda tem algum sonho pessoal ou algo que gostaria de realizar?
Na minha vida, os sonhos foram se simplificando. As coisas simples são belas, e a gente precisa valorizar esses momentos. Já viajei bastante, mas ainda estou devendo visitar lugares pitorescos da própria cidade, do estado e do nosso país.
E sinto uma energia muito grande em devolver alguma coisa para sociedade. Fazer o bem ao próximo, especialmente aos mais necessitados. Queria muito que a minha geração, meus filhos, e toda a sociedade, compreendessem isso com mais clareza. Fazer o bem sem olhar a quem, sem discriminação de raça, religião, sexo.
Tem muita gente precisando. E quando você faz o bem e sente o que fez, independente do resultado e do reconhecimento, a sensação é muito prazerosa. Muito boa. As pessoas precisavam experimentar isso.
Nome Completo: Everton Luiz Martins Rodrigues
Profissão: Registrador de Imóveis
Data de nascimento: 07/05/1965
Everton (60) com a esposa Silvana (57) e os filhos Jonas (29) e Stela (22).
Uma revista histórica
Seu pai acabara de deixá-lo no Cometa.
Para os batataenses, o Cometa era uma sala comercial de uns 10 metros quadrados. Naquela agência da companhia de ônibus do mesmo nome, um sofá e duas cadeiras para quem fosse comprar uma passagem, aguardar uma partida ou esperar por alguém. Naquela época havia apenas uma linha, esta era a época de França para São Paulo. A frequência era de duas vezes ao dia, e em quase todos estes trajetos, se fazia uma parada rápida em Batatais, em Ribeirão Preto e em Pirassununga.
Tão logo descera do fusca amarelo, se despediu do pai com um beijo, e um “amanhã a tarde estou de volta”. Tinha o dinheiro contado para o dia que se antecipava. Na sua cabeça foi a pernoite simples, um salgado e um refrigerante na parada em Pirassununga durante a ida, depois um bilhete de metrô ida e volta para a Sé, um lanche à noite, a passagem de volta para sua cidade, e quem sabe na volta um pacote de cheetos. Foi bem curto para lidar com imprevistos.
Todo este planejamento tinha como objetivo prestar um concurso público para buscar uma melhor posição na vida. Na época, era escrevente e respondia por um Cartório de Notas da cidade onde lhe ofereceram emprego quando ainda menino.
Na primeira parada em Ribeirão, impaciente pela ansiedade da prova do dia seguinte, acabou descendo e ficou bisbilhotando as revistas que pendiam em fios de elástico e sem invólucros plásticos numa prateleira como se fazia antigamente.
Sabia que não era o momento de comprar nada. Limitava-se, então, a ler as manchetes aparentes dos jornais, e folhear algumas revistas. Tudo ia bem, até que seus olhos viram uma Veja daquela semana. Na capa, o tema era a Constituição de 88. Movido mais pelo interesse nas mudanças que se prometia, tirou a carteira do bolso, lá se foi o lanche da noite, e comprou aquela edição para tentar se afastar dos temas da prova que àquela altura se misturavam na cabeça como se nunca mais fossem se organizar até a prova.
Voltou ligeiro para o Cometa quando o ronco do motor lhe chamou atenção. O orçamento já estava comprometido já no início da viagem, mas se nutria de otimismo e do cheiro de revista nova. Partiu.
Admirava as ruas das cidades, enquanto o ônibus não pegava a estrada. Assim que chegou na rodovia, ele decidiu devorar uma matéria da revista. Rapidamente, veio uma tontura, e em seguida um enjôo. Lembrou-se que ler em movimento era uma das suas fraquezas. Guardou a revista para mais tarde. Pegou no sono e acordou em Pirassununga, onde o ônibus faz uma nova parada breve para descanso dos passageiros.
Todos desceram, menos ele. Ele tinha uma revista para proteger, não deixaria no banco “dando sopa para o azar”. Foi quando se lembrou que era a única parada e ainda teria mais algumas horas de viagem. Por precaução, desceu com a revista na mão rumo ao banheiro.
Ali, não deixou nada, só lavou o rosto. A saída dos sanitários dava para o restaurante. Sentiu o cheiro de padaria e teve fome. Olhou para a revista debaixo do seu braço e lhe veio a lembrança de suas restrições orçamentárias. Passou ao largo contemplando pães de queijo, coxinhas, esfihas e outras tentações das estradas. Desta vez, resistiu.
Passou liso pela Caixa e saiu para a área externa. De cara deparou com a banca de revistas. Esta não era como a anterior, um pouco maior, bem iluminada, com prateleiras e mais prateleiras de jornais e revistas devidamente alinhadas, aguardando seus futuros donos. Encantado, entrou. Combinou consigo que só daria uma olhadela, nada de tocar, muito menos folhear algo, para não ser novamente tentado. Como tinha tempo, ficou ali apreciando gibis e revistas que não chegavam na sua cidade.
Depois de um tempo, de soslaio, observou que alguém o acompanhava com os olhos. O sujeito estava com um jaleco azul e nele havia um bolso bordado onde se lia o nome da banca. Ficou na dúvida se era apenas um funcionário, ou o próprio dono. Pela testa franzida, e pelos olhos penetrantes, estava com cara de ser o dono mesmo.
Foi quando percebeu que o observador não olhava para ele, mas para a sua Veja exatamente igual àquelas que também expunha. Esta delatava debaixo do seu braço direito e bem junto ao corpo. Sem nenhum esforço, muito menos intenção, aos olhos de outro, se tornara um meliante, um larápio de revistas. A cena estava dada.
Para evitar qualquer contratempo, e fugindo de uma possível argumentação, inventada em comprar sua própria revista. Olhou para Ulysses de braços abertos na promulgação, mas desta vez o bolso falou mais alto que a paixão pelo tema. Uma lagrima lhe correu garganta abaixo.
Lembrou-se do imperador César e de sua mulher. Então, como quem se despede de um grande amigo, se tornou à prateleira das semanárias. Delicadamente, tirou sua revista de baixo do braço e cuidadosamente a colocou junto com as outras irmãs gêmeas. Sem encarar, mas olhando de rabo de olho, viu o revisteiro acenar com a cabeça, como se aprovasse o arrependimento e a boa ação do jovem.
Entrou no ônibus meio aliviado, meio frustrado. Lembrou-se que não tinha lido quase nada da revista, nem sequer uma página, e ainda ficara mais curto de grana para encarar o dia e a noite.
Chegou em São Paulo. Pegou o metrô se acomodou no quartinho apertado da pensão próxima do local do concurso. Prestou o concurso na manhã seguinte e em que pese a noite mal dormida saiu confiante. No meio da tarde voltou para a rodoviária e pegou o Cometa para casa. Nas paradas nem quis descer pelo trauma do dia anterior.
No balanço do ônibus, antes de pegar no cochilo, veio um lampejo, seguido de freio.
Foi provado em dois mundos. No mundo cartesiano e teórico dos concursos parecia ter se saído bem, acalentava uma boa esperança de subir na carreira. Já no outro, aquele onde a vida crua acontece, entre Cometas, revistas, salgados e fiscais da honestidade aparente, o sentimento é que passa de raspão.
Aquela máxima se confirma, não basta ser honesto, tem que parecer e nem sempre é fácil.
⦁ Pedro Siena, 14 Ago 2023
https://medium.com/@pedronetosiena/seu-pai-acabara-de-deix%C3%A1-lo-no-cometa-83f127f05445
"Histórias do Ofício" É uma iniciativa em parceria entre o INR e a jornalista Samila Ariana Machado. A coluna traz entrevistas exclusivas com personalidades do setor notarial e registral do Brasil e do exterior, revelando não apenas suas trajetórias profissionais, mas também seu impacto social e sua essência humana. O projeto conta com o apoio de importantes nomes e instituições do segmento: ICNR — Instituto de Compliance Notarial e Registral, Blog do DG, GADEC Cartórios — Grupo de Alto Desempenho em Estudos de Cartório, Pedro Rocha (Tabelião e Registrador Civil), Rogério Silva (empresário especializado em livros raros, clássicos e antigos), Jornal Diário, Douglas Gavazzi — Advocacia e Consultoria Notarial e Registral, e Estudos Notariais.
Com um olhar sensível e aprofundado, Histórias do Ofício valoriza os profissionais que constroem, com ética e dedicação, o presente e o futuro do serviço extrajudicial.