Ricardo Henry Marques Dip.
09/12/2025
Na edição especial que marca o primeiro ano de Histórias do Ofício — e que também celebra o espírito natalino — homenageamos as narrativas que deram vida ao quadro.
Esta entrevista foi concedida meses antes da aposentadoria do desembargador Ricardo Henry Marques Dip, ocorrida em 14 de novembro de 2025.
Após 46 anos dedicados à magistratura paulista, o desembargador encerrou sua trajetória no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), deixando uma contribuição singular. Como presidente da União Internacional dos Juristas Católicos (UIJC), Ricardo Dip é reconhecido mundialmente como um dos grandes pensadores do Direito Natural.
A jornalista Samila Machado esteve na FIG-UNIMESP, em Guarulhos, em junho de 2025, durante a solenidade de outorga do título de Professor Doutor Honoris Causa ao desembargador Ricardo Dip. A foto que acompanha a entrevista foi registrada no evento.
1. Ao falar de seus pais, o senhor sempre carrega um saudosismo amoroso e respeitoso. Qual o maior legado – afetivo ou intelectual – que acredita ter herdado deles? Há algo que ainda o guia silenciosamente nos dias de hoje?
R. Tenho, de fato, saudade de meus pais, mortos, um, em 1996, e minha mãe em 2022. Foram para mim pais melhores do que eu fui e poderia ser para minhas filhas. Deixaram-me, por exemplo, uma herança afetiva: o acendrado amor pela família; e, no plano intelectual, o que fizeram foi muito me permitirem estudar (aqui me lembra algo: minha mãe preparava-me uma inteira garrafa térmica de café e entregava-me um pacote de bolachas para forrar-me o estômago, quando, em algumas tantas madrugadas, eu inventava de passar indormido, estudando, ora matérias obrigatórias dos cursos −eu marchava pelo direito e o jornalismo−, ora temas de que eu gostava, alheios dos assuntos desses cursos); sinal disso é que meu pai me deu um valioso presente, eu, com cerca de 14 ou 15 anos, ele, satisfeito da vida: o primeiro dicionário a que tive acesso.
Pergunta-me sobre algo que dessa herança me guie, silenciosamente, nestes meus tempos. Vou contar-lhe algo que pouca gente sabe, pouquíssima. Meus pais, católicos embora, não tinham vida sacramental, ainda que tenham morrido confessados e recebida a extrema-unção (hoje, mudou-se esse nome, é verdade, mas eu ainda posso e quero referi-lo pela designação que, catecúmeno, aprendi na minha infância). Era raro que meus pais fossem à Missa aos domingos. Eu, no entanto, ainda menino, lá na Bela Vista, ia sozinho à Missa dominical, na Igreja de Nossa Senhora Achiropita. Quatro quadras, de calças curtas ainda, pela Treze de Maio, ladeira acima, na ida, e, menos mal, ladeira abaixo, na volta. Mantive esse costume de não faltar à Missa. Ainda na mocidade, quando nenhum de meus amigos tinha sequer ligeira ideia do que era cumprir um preceito dominical, era já eu andando de minha casa, então na Vila Madalena, até a Igreja de Nossa Senhora de Fátima; cerca de quilômetro e meio, com sol ou chuva, não fazia mal… a distância não aumentava... e eu aprendi nessas idas e vindas o gosto da conversação interior. Eles, meus pais, porém, ainda que não fossem habitualmente à Missa, gostavam de que eu atendesse a isso regularmente; falavam desse hábito com manifesta satisfação, qual se aquele moleque, um pecador de meia tigela, valesse alguma coisa. Isso foi como receber um patrimônio, embora talvez me picasse um tanto, vae mihi!, o pecadilho da vaidade da boa opinião que de mim meus pais difundiam em tom hiperbólico.
2. O senhor já revelou em aula que seu interesse pelos cartórios nasceu ao ler “Petrarca, filho de Petracco” — uma linhagem que une poesia, notariado e memória. Sua ascendência libanesa também é marcante, tanto que recebeu o Prêmio Cultural Gibran Khalil Gibran. Há valores ou símbolos dessa cultura que o senhor ainda carrega no peito e que moldam sua forma de pensar e agir?
R. Há uma certa liberdade, não a direi poética, mas confesso que ficcional, ao menos em parte, nessa estória de a frase Petrarca, filho de Petracco estar na origem de meu amor pelas instituições extrajudiciais. Misturei-a com algumas verdades biográficas, mas era tão nítida a evidência da ficção que agora me surpreende houvesse alguém sido enganado pela fantasia literária. Mas talvez haja algo, de fato, ligando em minha vida “poesia e notariado”: as palavras, as letras, a busca da expressão estética. Foi sempre uma obsessão intelectual: encontrar a palavrinha certa para pensar, expressar e comunicar exatamente a ideia, o afeto, o valor, etc. O Cardeal Robert Sarah disse que “devemos ser preciosos na escolha das palavras”. Ele tem razão. Sabe, é interessante que isso venha à baila agora, porque me venho dedicando a preparar um ensaio sobre a linguagem no extrajudicial. Todos devemos considerar muito a preciosidade da eleição das palavras; principalmente devem fazê-lo os que fazem da língua um instrumento de trabalho e de ensino; lembro-me de um conselho de Werner Jaeger, na Paideia: “O domínio da palavra significa a soberania do espírito”.
Mas vamos a sua pergunta. Descendo eu de libaneses, portugueses e holandeses. Pelo resultado, devo concluir, de modo constrangido, que se trata de mistura sanguínea pouco favorável. Ali, dos libaneses, veio por sangue paterno meu genótipo dominante: o fenício; isso mesmo: sou, da parte de pai, um fenício de pura cepa; fomos nós, os fenícios, que inventamos o alfabeto. Meu bisavô libanês, deixe-me contar-lhe isto, foi um padre católico da Igreja maronita; ou seja, ordenou-se, casado, segundo o rito litúrgico siríaco ocidental. Mas por que, então, eu não sou maronita? É que, sendo minha mãe, entretanto, batizada na forma da liturgia romana da Igreja católica, eu não pude, secundum legem, acolher-me sob o rito maronita. (Um parêntese explicativo: a Igreja católica possui 24 ritos; um deles é o maronita, que constitui uma Igreja sui iuris, em unidade com Roma).
Indaga-me o que dessa concreta origem fenício-libanesa “carrego no peito” e molda minha “forma de pensar e agir”. Simples: não regredi ao politeísmo de meus mais longínquos ancestrais fenícios, mas, graças a Deus, aderi à fé católica, à fé da ininterrupta sucessão apostólica, século após século, isso de par com minha confessada devoção a São Maroun, cuja imagem tenho em casa à vista dos olhos.
3. Alguns dos seus livros trazem títulos que dialogam com clássicos da literatura e da filosofia — como “Crime e Castigo” e “A Cidade de Deus”. O que inspira essas escolhas? E, olhando para o atual cenário jurídico, estamos diante de um tempo que exige mais provocação do que prudência? Estamos, afinal, vivendo um certo caos jurídico?
R. Tenho muito em conta a importância da língua literária, da escrita exemplar; aprendi umas lições excelentes, entre tantas outras de Evanildo Bechara; uma, a de que a língua escrita propicia o diálogo permanente de gerações; outra, a de que a tradição é o juiz da exemplaridade da linguagem.
Desde minha primeira adolescência, ainda que de maneira pouco ou nada advertida, insinuava-se em minha alma a noção de que havia um dever ser da língua, havia uma normatividade a respeitar, para impedir a destruição do instrumento com que nós pensamos, expressamo-nos e comunicamos ideias, juízos, discursos, valores e afetos. Muito mais tarde, quando me pus a ler alguns estudos de Coșeriu, confirmei que isso era uma verdade pela qual valia a pena combater. Não me inclino ao casticismo ou ao purismo que levariam à imobilização da linguagem, mas, em contrapartida, sou avesso ao novidadismo, à babelização da língua; Sílvio Elia −que grande linguista foi ele!− disse certa vez que o segredo da renovação da linguagem está no equilíbrio entre tradição e inovação; digo eu: a novidade legítima é a que está de modo potencial no patrimônio da tradição.
Ora, os modelos exemplares da língua portuguesa são os de nossos bons autores, o de Camões, o de Vieira, o de Bernardes, o de Camilo, por exemplo, e para que não me acusem injustamente de arcaísmo, devemos considerar também, entre vários outros, os modelos modernos, assim os de um Manuel Bandeira, de um Guilherme de Almeida, de Gustavo Corção, de José Geraldo Vieira, de Fernando Sabino. Nos dias em que mal posso redigir um bilhete −acho que todos passamos por esse quarto de hora−, tomo as polêmicas de Carlos de Laet ou uns parágrafos machadianos, e passo a lê-las em voz alta. Pronto, recupero o animus scribendi.
Mas, como não deve alguém pôr-se a ler qualquer coisa, porque a vida é curta demais para ler-se o que se deve ler, justifica-se ficarmos só nos bons escritores, como o foram os dos livros mencionados em sua pergunta, Dostoiévski e S.Agostinho. Bem sei que há uma certa tentação de alegria mundana em ler coisas que não se devem ler: “As alegrias proibidas −isto quem disse foi Andrei Gabriel Pleșu− são alegrias perigosas”, porque “o prazer é dobrado pela palpitação do risco”. S.Agostinho deu disso um exemplo na conhecida passagem sobre o furto das peras.
Quanto a perguntar-me se os tempos atuais exigem mais provocação do que prudência, eu penso, permita-me isto, que cabe dar novo enunciado a essa pergunta: afinal, os tempos atuais exigem mais imprudência do que prudência? A resposta flui ipsius quæstiones: em que mundo, salvo no inferno, o vício mereceria exigir-se em lugar da virtude? Mas, de fato, os tempos atuais, com efeito, padecem frequentemente de alguma espécie de desordem, fruto do liberalismo intelectual, moral, léxico... e até religioso (haverá, nesse mundo, alguma bobagem que não tenha sido já afirmada por algum teólogo alemão, um especialista ouvido pela mídia ou −aproveito-me aqui de uma referência genial de Fernando Lázaro Carreter− uma dessas belíssimas cumieiras zoológicas que, em imperdíveis programas televisivos, concorrendo com a deusa Vênus, enchem-nos tanto de alegria os olhos, quanto de azedume as orelhas?).
4. Homenageado com frequência, o senhor também sabe homenagear. Já dedicou aulas emocionadas a amigos que partiram, como Bernardo Oswaldo Francez e Hélio Lobo Júnior. Que força era essa que os unia? O que o extrajudicial cultivou — ou despertou — nessa amizade?
R. Não podemos viver sem amigos. A amizade é um conforto para nossas misérias, mas −olho nisto−, disse muito bem Gómez Dávila que “muitos amam os homens só para esquecer de Deus com a consciência tranquila”; disso vem uma espécie de amizade sub modo Pelagii: abdicamos da fé (não é um tópico que religião não se discute?) e procuramos um liame que opinamos −muito mal (e digo isto sem data venia algum), muito mal mesmo− ser a caridade (uma caridade sem o pressuposto da fé…; esse gênero de “caridade” empareda o inferno).
O gosto e a dedicação pelo extrajudicial foram, em minha vida, circunstâncias que me propiciaram conhecer e conviver com alguns que se tornaram meus amigos. Mas eu antes diria que fiz amigos nas circunstâncias de tempo, lugar e temas extrajudiciais, apesar das divergências que com muitos tive nos temas, lugar e tempo do extrajudicial.
5. O senhor é reconhecido por uma cultura plural e profunda — que transita com naturalidade da filosofia à música, do direito à teologia. Como nascem suas palestras? Há rituais, silêncios, anotações à mão? Onde a fé encontra seu lugar nesse processo criativo?
R. Julga-me de maneira generosamente hiperbólica, mas eu, de minha parte, julgo-me dotado de mediania intelectual; tanto o prova o quanto de esforço persistente sempre tenho a realizar para aprender qualquer coisa. Além disso, quando pensamos em Adão e Salomão, em S.Alberto Magno e S.Tomás de Aquino, como alguém poderá admitir, quando muito, ir além da mediocridade da cultura? Digo com franqueza: alegra-me reconhecer minhas deficiências, porque isso me alenta a perseverança no estudo, a buscar a verdade como quem busca, em extrema inanição, o alimento que o pode salvar. A chave da arca da sabedoria é uma Pessoa que, de si própria, disse ser a Verdade, o Caminho e a Vida.
Quanto às palestras, procuro prepará-las de maneira honrada. Peço, primeiro, a graça de Deus para desejar, inquirir e saber o que devo saber, inquirir e desejar. Medito, então, o que posso. Gosto de fazê-lo quando acordo durante a noite. Leio a seguir o que me parecer necessário. Por fim, procuro articular o que devo exprimir. E rezo, ao fim. Rezo mesmo ao início de cada palestra. (Confesso que a melhor palestra, eu, costumeiramente, profiro-a sempre de modo tardio: em casa ou, quando o caso, no hotel, quando, após ministrá-la publicamente, completo-a para mim próprio: “ah...que bom seria tivesse eu dito isso ou aquilo”, “ah... que ótimo seria se eu não tivesse dito aquilo ou isso...”).
6. Estudos recentes apontam que, pela primeira vez, a geração atual apresenta QI inferior à dos pais. Na prática, vemos também uma geração mais dispersa e menos reflexiva. No direito, isso se manifesta em fórmulas prontas, raciocínio apressado, pouca escuta. O que falta à nova geração jurídica, na sua visão? O que ainda pode salvá-la — ou despertá-la?
R. Não me parece que se possa julgar em bloco a nova geração de juristas. É verdade que eles, em larga medida, não têm recebido o patrimônio deixado pela geração de nossos Maiores. Mas há muita gente jovem que almeja encontrar a verdade e agir o bem. O que lhe faz falta, muitas vezes e gravemente, é saber onde buscar o conhecimento que lhe daria o rumo da justiça.
Muitos de minha época juvenil enterraram os sinais da tradição, e, agora, a gente nova precisa da herança transmitida, mas os coveiros não querem ou não conseguem ensiná-la.
7. O senhor já disse ter especial apreço pela palavra “ventura” — que carrega em si a ideia de destino, sorte ou promessa. Após uma carreira tão marcante no Judiciário e no extrajudicial, o que o senhor imagina (ou pressente) para os próximos capítulos da sua própria ventura?
R. Suas perguntas foram muito interessantes... eu a parabenizo por isso. Mas não me lembro de ter dito vez alguma que tivesse apreço pela palavra “ventura”. Não terá sido “aventura”? Digo isso porque a vida é uma aventura, ao fim da qual nos salvamos ou estamos eternamente desgraçados. A salvação é sempre um negócio de risco: Osias começou bem e acabou mal; Manassés acabou bem.
Aposento-me em novembro da função de magistrado. Ainda não estanquei a cabeça para saber a que devo lançar-me. Nem quero definir isso agora, porque me custa imaginar-me fora da Magistratura a que me dediquei por quase meio século. Tenho já, porém, alguns laivos, ainda pequenas ideias de estudar, outras ainda, quem sabe disto é Deus, de prosseguir na esfera profissional do direito (consultas? palestras?). E quero ler, isso quero-o, sim: ler o quanto me cobram alguns livros que me espiam, lastimosos, da desordem das estantes de minha biblioteca.
Nota da redação: Como esta entrevista foi
realizada antes da aposentadoria do desembargador Ricardo Dip, sua
reflexão sobre os “próximos capítulos” de sua
própria ventura pode ser conferida posteriormente
na aula 441 da série Registros sobre
Registros — “O que farei depois de minha aposentadoria
no TJ de São Paulo?”, disponível no YouTube: Link:https://www.youtube.com/watch?v=uJUrm403X40;
Fonte: ANOREG/PR.
Bate-bola final
Uma palavra que o senhor diria a si mesmo no início da carreira: confiança em Nossa Senhora (foi exatamente isso o que eu disse, em março de 1979, ajoelhado aos pés de uma bela imagem de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja de Santo Antonio, ali no Largo do Patriarca, em São Paulo).
Uma personalidade que admira profundamente: José Pedro Galvão de Sousa, meu principal mestre
Uma citação que o inspira — e por quê: In principio erat Verbum. Porque tudo se assenta e move para o Reino do Verbo de Deus.
Redes sociais: Instagram
— @pensandocomricardodip
O perfil também pode ser acessado pelo QR Code abaixo:
Diversas homenagens foram prestadas ao magistrado em razão de sua trajetória exemplar, as quais podem ser acessadas nos links abaixo:
ANOREG/SP
https://www.instagram.com/p/DRC6ZZ8DLY4/?igsh=MWk3MHN6bWpiaGhwdw==
ANOREG/PR
https://www.instagram.com/reel/DRDNbImkUUJ/?igsh=OW1tMDlwN3FlbjJx
ANOREG/BR
https://www.instagram.com/p/DRDYgjDlcGx/?igsh=MW8yZzM4NWQ5enRmaQ%3D%3D
ANOREG/MA
https://www.instagram.com/p/DRCMSv-kQVq/?igsh=MTV6ZXcwMXBnNzcxcA%3D%3D
ANOREG/PA
https://www.instagram.com/p/DRDdg9eElcw/?igsh=NXp1cGY1Y3AyM2dj
Grupo Veralex
https://www.instagram.com/p/DRDkCcvEcqr/?img_index=1
O São Paulo
https://osaopaulo.org.br/sao-paulo/desembargador-ricardo-dip-deus-e-o-fundamento-ultimo-do-direito/
"Histórias do Ofício" É uma iniciativa em parceria entre o INR e a jornalista Samila Ariana Machado. A coluna traz entrevistas exclusivas com personalidades do setor notarial e registral do Brasil e do exterior, revelando não apenas suas trajetórias profissionais, mas também seu impacto social e sua essência humana. O projeto conta com o apoio de importantes nomes e instituições do segmento: ICNR — Instituto de Compliance Notarial e Registral, Blog do DG, GADEC Cartórios — Grupo de Alto Desempenho em Estudos de Cartório, Pedro Rocha (Tabelião e Registrador Civil), Rogério Silva (empresário especializado em livros raros, clássicos e antigos), Jornal Diário, Douglas Gavazzi — Advocacia e Consultoria Notarial e Registral, e Estudos Notariais.
Com um olhar sensível e aprofundado, Histórias do Ofício valoriza os profissionais que constroem, com ética e dedicação, o presente e o futuro do serviço extrajudicial.