Processo notarial e registral: TEMA IV (décima quarta parte): sobre o processo notarial: os atos próprios do tabelionato latino: a escritura pública (segunda parte: divisão da escritura pública).

Antes de ingressarmos no exame da questão específica da comparência no processo de elaboração da escritura notarial, abramos aqui um breve parêntese a fim de complementar o tema, já examinado, do cabeçalho dessa escritura. Trata-se apenas dizer que eventuais lapsos do cabeçalho da escritura (ad exemplum, referir que se cuida de uma «doação», quando o actum é o de uma venda; ou que é caso de «comodato», quando o é, na verdade, de «locação») não invalidam a escritura, e deve, pois, o registrador, tanto que se assegure da significatio verdadeira do actum −o que ele extrairá da exposição e da estipulação do título−, superar a irregularidade textual. Todavia, se o erro do cabeçalho for o de omissão de data, deve distinguir-se: haverá nulidade formal absoluta se essa omissão for total (é que ela não será integral se a datação se encontrar em meio ou ao fim do texto documentado): total é a omissão dessa data quando a lacuna for impossível de determinar-se indiretamente (vidē Giménez-Arnau). A data da escritura, com efeito, é um seu requisito indispensável (cf. inc. I do § 1º do art. 215 do Cód.civ. brasileiro), elemento «necessário à produção de seus efeitos» (Vitor Kümpel e Carla Ferrari), exigível «con vigoroso valor para la validez y prueba del documento» (Emérito González).  Ressalve-se, entretanto, a possibilidade de que se averigue essa data por meio supletório (é o que pode chamar-se de data indireta), sem perder de vista, embora, a importância já historicamente conferida à datação dos instrumentos públicos, a ponto de e, nas Ordenações filipinas, cominar-se o perdimento do ofício se houvesse omissão de «dia, mez e anno» nas cartas, sentenças e termos (§ 16 do título XXIV do livro I; cf. também, p.ex., § 7 do título LXXX do mesmo livro).

A segunda parte da estruturação formal da escritura pública diz respeito ao comparecimento ou comparência dos clientes (também ditos sujeitos ou partes) perante o notário. Assinale-se que os requisitos da escritura têm um status de condição sine qua para a vitalidade dos títulos em acepção material, e a qualificação desses requisitos (entre eles o da comparência) sobrevive –ainda que não inteiramente (pois deve pôr-se a salvo o campo de incidência da fé pública do notário)– na tarefa de sobrequalificação registrária. Exemplo emblemático a ter-se em conta: o da escritura que menciona de modo expresso a falta de comparência presencial do cliente. 

O comparecimento no processo de formação da escritura é um fato notarial e é uma parte integrante do título expedido pelo tabelião, no qual título se indicam não apenas as pessoas que intervêm no ato (as que comparecem perante o notário), mas alguns outros elementos em que se firmam ou de que se extraem consequentes de direito. 

Assim, a comparência notarial é 

• um fato, 

• uma parte formal da escritura pública (narrativa de uma compresença em ato) e 

• um juízo de qualificação jurídica (vidē Gomá Salcedo). 

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Ricardo Dip

Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, de cuja Seção de Direito Público foi Presidente no biênio 2016/2017. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social “Cásper Líbero”. Mestre em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito. É membro fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal). É acadêmico de honra da Real de Jurisprudencia y Legislación de Madri (Espanha). É diretor da Seção de Estudos de Direito Natural do Consejo de Estudios Hispánicos “Felipe II”, de Madri, e membro do Conselho de Redação de sua revista Fuego y Raya, revista hispanoamericana de história e política. É membro do comitê científico do Instituto de Estudios Filosóficos “Santo Tomás de Aquino”, de Buenos Aires. Integra o Conselho Acadêmico da Seção de Filosofia do Direito de El Derecho: Diário de Doctrina y Jurisprudencia, sob a rubrica da Universidade Católica Argentina. É membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Notarial, editada pelo Colégio Notarial do Brasil. É membro de honra do CENoR, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É membro da Academia Peruana de História. É titular da cadeira n. 12 da Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário e da cadeira n. 23 da Academia Notarial Brasileira. Autor de vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior (currículo atualizado até 24 de janeiro de 2018).

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